O âmbito muito peculiar de tal modo de ser tende a esfumar-se e a virar lenda na actual volatilidade, pelo que relevar e divulgar a experiência cívica de homens como o Comandante Manuel Cordeiro deve constituir um imperativo de consciência e um compromisso de índole cientifica.
A partilha de vivências antigas, relatadas através da linguagem falada ou escrita, deve, portanto, ainda, merecer o acolhimento e o estímulo de todos nós, elevando-a à condição de elemento de estudo, para identificação, compreensão e preservação de factos e figuras.
São esses os princípios que seguimos e procuramos dar exemplo em FOGO & HISTÓRIA, transcrevendo para o efeito, nesta oportunidade, quatro excertos do livro aqui recenseado.
No cômputo geral, trata-se de um prazeroso encontro com a história dos BVAF e os seus protagonistas, entre os quais o Comandante Jeremias, conforme era conhecido, que se notabilizou localmente no exercício das suas funções, mas também ao nível distrital e nacional nos órgãos de cúpula das estruturas representativas dos bombeiros (Presidente da Federação dos Bombeiros do Distrito de Bragança e Presidente da Mesa dos Congressos da Liga dos Bombeiros Portugueses).
Entre a vida vivida e a vida contada, escreve, agora, o Comandante Manuel Cordeiro:
Da inscrição nos Bombeiros à proposta para Comandante
Com dezoito anos de idade, emancipado com a necessária autorização do meu pai e ainda a estudar em Bragança, tirei a carta de condução e comecei a conduzir um modesto automóvel que ele resolveu adquirir.
Eram dias difíceis para os Bombeiros nesse tempo. Quando por vezes era necessário, o Comandante Jeremias chegava a deslocar-se à quinta de um grande proprietário, o Dr. Roque, que vivia junto ao rio Sabor, na Quinta Branca, a solicitar a dispensa de um motorista que ali trabalhava, para fazer o transporte de um doente. Mas como a casa comercial do Comandante Jeremias era contígua com a de meu pai, também eu comecei a ser solicitado para alguns serviços. Apenas havia na corporação uma ambulância Volkswagen, de 1957, e um pronto-socorro Bedford, de 1952.
Nesse tempo os serviços de saúde iam resolvendo localmente muitos problemas que apareciam. Só em casos mais complicados mandavam os doentes para outros hospitais. Recordo até que alguns dos poucos serviços que se faziam era para Coimbra, por informação e influência de alguns médicos da nossa região, que aqui chegaram a vir fazer serviços.
O tempo foi passando mais depressa do que eu contava e chegou a altura do cumprimento do serviço militar obrigatório. Fui recenseado em mil novecentos e cinquenta e oito e incorporado em sete de abril de 1959, na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, onde frequentei o curso de Sargentos Milicianos. Em 26 de abril de mil novecentos e sessenta fui promovido a Furriel Miliciano e embarquei em Lisboa no navio Niassa, integrado numa comissão de serviço em Goa, na antiga Índia Portuguesa. Depois de cerca de cinco meses num campo de concentração de prisioneiros de guerra desembarquei em Lisboa em 22 de maio de mil novecentos e sessenta e dois. Já em casa, depois desses tempos tão mal passados e após alguns dias de descanso, comecei a ser novamente contactado pelo Comandante Jeremias para transportar alguns doentes.
Já encontrei o quartel dos Bombeiros ligeiramente ampliado e com algum do material recolhido na pequena garagem existente, mas pouco mais do que os carros de tração braçal, o pronto-socorro Bedford, o saco de lona, a moto-bomba e a ambulância Volkswagen. O equipamento de trabalho era um simples fato-macaco azul. Já existia, porém, uma bonita farda azul de que os bombeiros se orgulhavam em dias festivos.
Em determinada altura, já casado e com família, o senhor Comandante Jeremias convidou-me a inscrever-me como Bombeiro Voluntário. A inscrição nos Bombeiros permitia estar no seguro, o que para ele era conveniente, uma vez que conduzia os carros da corporação. De salientar que nesta altura já possuía todas as cartas, inclusive a de pesados e de motos.
É claro que aderi de imediato ao seu pedido. Em oito de dezembro de mil novecentos e setenta e um inscrevi-me como aspirante. Frequentei o curso existente nessa época, subi as velhas escadas portuenses de ganchos, como qualquer outro concorrente a Bombeiro e aprendi a trabalhar com o pouco material que havia. Fui nomeado Bombeiro de 3.ª classe em vinte e sete de dezembro de mil novecentos e setenta e dois.
A atenção do Comandante Jeremias em relação ao bom funcionamento da corporação levou-o a convidar-me para seu Ajudante de Comando, por entender que eu lhe poderia ser bastante útil para o ajudar na secretaria e nas suas faltas e muito em especial para dar ordem unida ao pessoal, atendendo a que para isso estava eu devidamente preparado, uma vez que o simples posto de Furriel na tropa e os ensinamentos da Escola Prática de Cavalaria assim o permitiam. Em dezassete de maio de mil novecentos e setenta e seis fui nomeado Ajudante de Comando. Em trinta e um de julho de mil novecentos e oitenta e um fui proposto, pelo mesmo Comandante, a Segundo Comandante. Com a passagem do Comandante Jeremias ao Quadro de Honra, por atingir o limite da idade e apenas de acordo com a sua vontade, fui proposto para Primeiro Comandante, em vinte e nove de junho de mil novecentos e oitenta e quatro.
Sabia que me esperavam dias difíceis. Não era fácil substituir um Comandante como Jeremias Ferreira.
Da boa relação da minha família com a do Comandante Jeremias, que eu conheci desde criança, ficaram sempre algumas memórias, que não são possíveis esquecer. O senhor Jeremias era um bom comerciante e uma pessoa bastante conhecida, não só como Comandante dos Bombeiros, como por muitos outros bons serviços que prestava à nossa terra. Ainda recordo o bom Comandante como ator numa peça de teatro aqui realizada nos bons velhos tempos, “As pupilas do senhor reitor”, em que ele representava o "João Semana" e que por acaso também contracenava com ele o meu pai, que representava o "José das Dornas".
Dinâmico e participativo, exercia a sua cidadania e colaborava em todos estes teatros e cortejos de oferendas e muitas outras festas, que tinham sempre como único objetivo ajudar as instituições da terra, muito em especial os nossos Bombeiros.
Mas todas as boas relações existentes aumentaram quando fui para os Bombeiros. Todo o trabalho que o ajudei a completar, os serões passados no gabinete dos Bombeiros e talvez o facto de eu já estar casado e com três filhos, fazia com que muitas vezes, nas nossas conversas, tivéssemos alguns desabafos que completavam as nossas noites de trabalho, alguns mais agradáveis, outros menos felizes, mas sempre encarados pelo Comandante Jeremias com a responsabilidade e a determinação adequada a cada momento.
A primeira história que me contou o Comandante Jeremias, numa dessas noites, foi a sua integração nos Bombeiros. Nomeado Comandante, entendeu deslocar-se ao Porto e dirigir-se ao Batalhão dos Sapadores daquela cidade, com o fim de ali poder solicitar alguma instrução que no início o pudesse ajudar na preparação dos seus Bombeiros, em Alfândega da Fé. Ia vestido com o seu melhor fato-macaco e com o fardamento usado nessa época. Qual o seu espanto quando alguém o informou que a pessoa que o poderia atender não recebia ninguém de fato-macaco! Valeu-lhe um Chefe do referido batalhão, por acaso até um transmontano, que apercebendo-se da boa intenção do nosso Comandante o chamou ao seu gabinete e lhe recomendou que viesse tranquilo para casa, uma vez que dentro de dez ou vinte dias teria em casa os documentos necessários para iniciar a sua instrução. Não podemos esquecer que no ano de mil novecentos e trinta e quatro ainda não havia telemóveis e muito menos internet. Mas passados os dias prometidos, o nosso Comandante tinha em Alfândega da Fé uma pasta com as folhas necessárias, datilografadas pelas antigas máquinas de escrever, com que lhe foi possível ministrar as primeiras instruções, pasta esta que ainda passou muitas vezes pela minha mão e à qual eu também recorri muitas vezes. Provavelmente alguns recordam ainda os diversos tempos que tinham que efetuar para manusear em boas condições os quatro lances de uma escada portuense em madeira.
Presença inesperada em período de convalescença
Não posso também deixar de mencionar aqui uma situação que dá bem a entender o que era este grande Comandante e este Bombeiro. Em determinada altura da sua vida foi submetido a uma operação bastante melindrosa, que o teve internado numa casa de saúde durante algum tempo e com certos cuidados. Eu próprio nessa altura me desloquei ao Porto com dois dos Chefes da corporação que mostraram interesse em me acompanhar. Confesso que regressamos apreensivos com o seu estado de saúde e até calados na viagem de regresso. Mas passado algum tempo o Comandante, ainda em tratamento, regressou à nossa terra e bastante melhor. Mas, qual não foi o meu espanto, quando passados alguns dias, andando com Bombeiros na serra do Reboredo, em Moncorvo, a ajudar outras corporações, me aparece no alto da serra, na companhia de um Bombeiro de Moncorvo, o nosso Comandante, ainda com ligaduras da operação e em tratamento. Quando lhe perguntei, quase a ralhar, mas com todo o respeito, o que estava ali a fazer depois da dita operação e ainda em convalescença, o Comandante limitou-se a responder que nos ia a ajudar, caso necessitássemos dos seus serviços!
Impressionava-me a sua coragem, a determinação, a maneira como encarava os problemas que lhe iam batendo à porta e destes, alguns, tristes, que tenho de recordar.
Glorificar a acção generosa e solidária das gerações de ontem
Fico reconhecido pelos apoios que hoje são prestados, muito em especial pelas Autarquias. Durante todo o meu tempo de serviço prestado aos Bombeiros tive ainda ocasião de pertencer a direções autárquicas que, salvo raras excepções, não davam um tostão que fosse para os Bombeiros. Recordo até que quando foram adquiridos os primeiros dois rádios para instalar nas viaturas, foi o Comandante Jeremias que assinou o cheque para que os mesmos viessem e pudessem ser pagos quando houvesse dinheiro. Eram efetivamente outros tempos e havia outras dificuldades. Provavelmente ainda prestam serviço no quartel alguns Bombeiros que gastaram nos incêndios florestais fardas verdes que nos eram fornecidas pelo exército, quando já não tinham uso no serviço militar.
Fico muito satisfeito com a formação que hoje tem muito do nosso pessoal, o que entendo como fundamental e que já permitiu salvar no próprio quartel um dos nossos homens. Noutros tempos isto era muito difícil.
Não poderemos deixar apagar o nome de todos os que trabalharam para tão nobre causa, apenas pelo amor ao Voluntariado, e sem qualquer remuneração.
Subtítulos da responsabilidade da Redacção de F&H
Fotos extraídas do livro "Recordações de um Bombeiro Voluntário"
Glorificar a acção generosa e solidária das gerações de ontem
Fico reconhecido pelos apoios que hoje são prestados, muito em especial pelas Autarquias. Durante todo o meu tempo de serviço prestado aos Bombeiros tive ainda ocasião de pertencer a direções autárquicas que, salvo raras excepções, não davam um tostão que fosse para os Bombeiros. Recordo até que quando foram adquiridos os primeiros dois rádios para instalar nas viaturas, foi o Comandante Jeremias que assinou o cheque para que os mesmos viessem e pudessem ser pagos quando houvesse dinheiro. Eram efetivamente outros tempos e havia outras dificuldades. Provavelmente ainda prestam serviço no quartel alguns Bombeiros que gastaram nos incêndios florestais fardas verdes que nos eram fornecidas pelo exército, quando já não tinham uso no serviço militar.
Fico muito satisfeito com a formação que hoje tem muito do nosso pessoal, o que entendo como fundamental e que já permitiu salvar no próprio quartel um dos nossos homens. Noutros tempos isto era muito difícil.
Não poderemos deixar apagar o nome de todos os que trabalharam para tão nobre causa, apenas pelo amor ao Voluntariado, e sem qualquer remuneração.
Fotos extraídas do livro "Recordações de um Bombeiro Voluntário"